JURISTA – O seu papel no nosso tempo

JURISTA – O seu papel no nosso tempo

O PAPEL DO JURISTA NO NOSSO TEMPO

1. O sentido e o objectivo.

2. Considerações de método

3.  A DÚVIDA.

1. As correntes de ideias do nosso tempo que concorriam no sentido de um “dépassement” do Direito.

a) Movimento científico-tecnológico.

b) Atitude existencialista.

c) Prognose Marxista.

d)  Cosmogénese Chardineana.

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1. O sentido e o objectivo.

O objectivo deste texto é saber qual é o papel sócio-cultural que o jurista hoje desempenha.

Este tema será analisado com referência a três questões, que serão dirigidas tanto ao direito como ao jurista:

a)      Porquê?

b)      Para quê?

c)      De que modo?

Pelo “porquê” perguntamos directamente pelo fundamento, pela validade do direito, enquanto tal; no “para quê” interrogamo-nos sobre a função humano-social do jurídico, e o “de que modo” põe-nos perante o seu problema metodológico. Assim, pois, o jurista terá um papel a desempenhar e desempenhá-lo-á bem, se o direito for uma intenção válida, que ele assuma na sua verdadeira e indispensável função humano-social, para o realizar em termos metodologicamente adequados.

 2. Considerações de método

Para podermos definir a importância da função do jurista, temos primeiro que analisar o problema do direito, ou seja, equacionar o porquê da crise do direito.

Para isso, temos que fazer uma viagem pela história para visionar como se foi, ao longo dos tempos, encarando o direito e seu reflexo na pessoa do jurista.

Pois: “o nada é também possível, pois o ter sido não se mostra como garantia de continuar a ser.”

Esta crise, não é estanque, é mutável, e essa mutabilidade decorre da inconstância humana. Há pois, que inserir aí mesmo, no próprio momento da mutação e da crise, o problema do direito, na tentativa de encontrar para ele a solução à altura do nosso tempo, e sem excluir uma possivelmente necessária conversão do jurista, nas suas intenções e nos seus métodos.

Recorramos, pois á história para vislumbrar como foi evoluindo este paradigma da crise do direito:

Na história romano-europeia do direito são já discrimináveis três profundas revisões. O que o jurista romano via no Direito e como o realizava não se confunde com o sentido jurídico e a metodologia do jurista medieval, assim como este se recusa à identificação com o jurista da idade Moderna. O que de todos eles se poderá dizer é que num ponto e no outro assumiram a intenção que se sincroniza com o seu tempo, o que era de esperar.

O jurista romano, posto perante uma sociedade pluralista ou de um federalismo sócio-familiar que se não integrava em qualquer ordem colectiva supra-individual, foi dela verdadeiramente o juris-pudens, o árbitro que explicava um direito, era um verdadeiro “mediador do equilíbrio social”.

O jurista medieval, o jurista do “direito comum”, situava-se numa sociedade de todo distinta, uma sociedade que se via integrada em unidades orgânicas fortemente hierarquizadas, hierarquia essa que encontrava o seu fundamento numa intenção totalizante ordenada a Deus, como o ponto de convergência e o foco de irradiação. Deus é o vértice da pirâmide e o fundamento da ordem humana.

Surge, mais tarde, com a idade Moderna, uma nova figura, a soberania e o poder absoluto do Leviathan. O homem aceita-se o súbdito do Estado, e no direito vê a vontade expressa do seu poder soberano.  O direito é agora um sistema unitário e racionalmente aplicável.

Na ilusão pela busca do verdadeiro fundamento do direito, do verdadeiro paradigma da crise, só nos resta concluir que as épocas históricas e as suas modificações humano-sociais deram ao problema do direito a única resposta possível, a sua. Em cada uma delas o homem transcendeu-se à autopressuposição de um novo sentido por que iluminou e fundamentou a solidariedade da sua convivência ética no mundo humano, que outra coisa não é, nem a outro objectivo se propõe o direito.

3.  A DÚVIDA

1. As correntes de ideias do nosso tempo que concorriam no sentido de um “dépassement” do Direito

Vejamos agora, a proposta de quatro concepções fundamentais, e distintas, do homem e do seu mundo, que não são mais do que quatro totalizações do homem e do ser, ou do ser pura e simplesmente.

São elas: o movimento científico-tecnológico, a atitude existencialista, a prognose marxista e o sistema da cosmogénese vislumbrada por Teilhard de Chardin.

E todas elas parecem encontrar-se num único ponto, na negação da validade ou na superação do direito. Todas elas anunciam um homem novo, que já não tem a ver com o direito ou que o levaria superado: o homem planificado e funcional da sociedade acabadamente industrializada, sociedade científico-tecnocrática, da abundância ou dos ócios; o homem existencialmente autêntico; o homem desalienado e fraterno; o homem ultrahumano da plena e unitária personalização. 

  a) Movimento científico-tecnológico

Diz-nos que, em primeiro lugar, todas as divisões de que sofre o mundo, uma sobretudo lhe importa: a que opõe as sociedades pobres (a braços com os problemas essenciais da fome, da doença, da ignorância) às sociedades ricas e altamente industrializadas. Pois a mesma distância de nível que as separa lhes imporia um processo de solução idêntico, uma vez que nas primeiras a sua mesma situação de necessidade levaria a sacrificar tudo a um plano racionalmente técnico de desenvolvimento, e nas segundas é a planificação técnica e funcional a própria expressão das suas estruturas e da sua evolução. O que nos permite concluir que em ambas as sociedades se abrem as portas ao homem totalmente planificado (segundo Alfred Weber o “quarto homem”) nas suas ocupações e nos seus ócios, o homem de uma sociedade técnico-funcional, em que ele deixa de ser considerado como um cidadão e passa a um mero “funcionário” da sociedade.

Como nas sociedades pobres o “terceiro homem”, que é o homem das liberdades e da autonomia, que já é patente nas sociedades ricas, essas teriam que operar uma mutação deliberada e saltar para o “quarto homem”.

O que esse estádio social afirma é que o “homem é antiquado” (G. Anders). Num mundo que respira tecnologia e que se funde com ela própria, em que a máquina se confunde com o próprio homem e de certa forma o ultrapassa e o substitui, aquilo que é humano no homem já não tem lugar. Numa palavra, o homem no mundo autonomizado da cibernética seria, como diz Henri Lefebvre, o cibernantropo, ou o habitante do Brave new World.

Este desapossamento de relações sociais e de substituição humana através da máquina, leva o homem a encerrar-se num mundo digital e a perder o contacto com o mundo exterior, deixando de cultivar a sua humanidade, e remetendo-o ao seu próprio vazio, um vazio de si próprio.

Esta realidade leva a que o interesse que o homem tem por si mesmo tende a esgotar-se no interesse pela linguagem. E a linguagem oferece-se quer como objecto único ou redutivo do pensamento, quer como a última objetividade, do neopositivismo ao estruturalismo, porque ele é o campo humano da impessoalidade e da mimèsis.

O neopositivismo depara decerto nas suas análises com um resíduo humano, mas não vê nele senão “proposições sem sentido” e remete-o para a intimidade que se deve pura e simplesmente silenciar (Wittgenstein). Os homens estão uns perante os outros, quando tenham algo de irredutivelmente humano a comunicar-se.

O estruturalismo tende a ser mais radical, anunciando que “o homem está em vias de desaparecer”- “ o homem é apenas uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples ruga no nosso saber, e que desaparecerá desde que este haja encontrado uma forma nova”; já que isso que se diz “homem” mais não é que uma função do sistema estrutural fora dele, de tal modo que nem a palavra é sua, não é ele que fala, mas a palavra nele.

Onde se encaixa neste mundo o direito e o jurista?

Se o direito só pode sê-lo enquanto for um transcender axiológico que fundamente (e, portanto, critique) as relações humanas na convivência comunitária, se o direito só tem sentido, e autonomia, como projeto axiológico da vida comunitária, decerto que não terá ele lugar numa sociedade que aceite submeter-se ao totalitarismo da redução racional-tecnocrática. O momento ético-axiológico com que o transcender jurídico informa a organização da convivência social será substituído pelo momento racional-funcional da planificação técnica, e toda a referência à pessoa humana, de que se alimentam os conteúdos jurídicos da liberdade, da responsabilidade, da culpa, etc., seria dissolvida pelos esquemas objetivo-formalizantes dos condicionamentos psicológicos e sociológicos, parâmetros esses, já variáveis, já invariantes, com que unicamente calcula o plano.

Assim, o mediador da convivência ética, que sempre tem sido o jurista, passaria a ser neste mundo um anacronismo a superar pelo tecnocrata e pelo manager, se não mesmo pela “máquina governamental” (ELLUL); ou a caber-lhe ainda, uma função de mero técnico dos dispositivos cogentes, o verdadeiro burocrata da coação. 

 b) Atitude existencialista

Neste pensamento tudo se refere ao Dasein, à “realidade humana”, ao homem, enquanto o ser que, sendo-no-mundo, transcende o mundo em que se situa para se reconhecer no seu poder-ser, e que sendo esse poder-ser se compreende na angústia do possível ou do nada.

Nesta corrente temos pois, duas ideias possíveis da compreenção do homem, pois se a existência é o facto da liberdade, também é o lugar da manifestação do Ser e é dispensadora de todo o sentido e de toda a validade.

Assim:

  • ou estamos condenados a uma existencial incomunicabilidade comunitária e o direito deixa de ter sentido para a Existência como tal;
  • ou a comunicação e integração comunitárias se revelam existencialmente autênticas e o direito encontra na sua própria Existência o seu fundamento.

No primeiro caso, o direito será contra o homem, uma das formas da sua alienação.

No segundo caso ele será expressão da sua própria humanidade.

O pólo racional-tecnológico negava o direito porque não conhecia o homem, e o pólo existencial negava igualmente o direito porque conhecia demasiado o homem.

Assim, o direito só teria viabilidade se o homem se contentasse com aquele demi-monde em que se recusa tanto à sua acabada desumanização como à sua plena humanização.

 c) Prognose Marxista

A sotereologia marxista oferece a previsão do futuro e com ele, embora através do cumprimento agónico e demorado de um certo processo, “o advento do homem humano mediante o salto para o reino da liberdade”.

Através da visão, resolvem-se todas as dependências e todas as contradições, todas as fraturas e todas as alienações, entre as quais se contrariam o Direito e o Estado. E a solução estava na criação de uma sociedade sem classes, pois segundo Marx:” A filosofia não pode ser realizada sem a supressão do proletariado, e o proletariado não pode ser abolido sem a realização da Filosofia”.

Só o direito e o Estado socialistas, instituídos pela ditadura do proletariado, diretamente se extinguem ao consumarem-se socialmente as suas próprias vocações.

O que quer dizer que o homem está inteiramente, no seu pensamento e na sua acção, na sua existência e na sua responsabilidade, inserido na praxis, ele não é senão o sujeito daquela praxis global da transformação do mundo, a que é chamado, e em que a ação se pensa e o pensamento atua.

É importante salientar que todas as intencionalidades espirituais e sociais se encontram aqui submetidas a um compromisso ideológico, pelo que o direito vai entendido apenas como o instrumento normativo que reflete a ideologia que serve, e o Estado é a institucionalização do poder daquela ideologia no momento triunfante.

O direito tem uma subsistência que o autonomiza das meras intenções ideológicas, porque é, ou pode ser, não o dútil instrumento de domínio e opressão, mas a afirmação mesma da dignidade e liberdade do homem, aqui mesmo e hoje. Sendo assim, deduz-se que há uma autonomia do direito em relação ao Estado.

Podemos concluir que o Estado esta imbuído de uma certa mutabilidade que é externa ao próprio direito, porque é o direito que subsiste quando o Estado muda segundo as ideologias de cada época.

Simplesmente, o homem é o que é, e ele é o facto da liberdae; a liberdade está hoje no homem. Está aí de jure, é certo, mas de jure também a vemos negada.

 d)  Cosmogénese Chardineana

Vislumbra a síntese entre a vida da Natureza e a vida do Espírito, a caminho da plenitude da consciência e do Ultra-humano, referindo a superação do direito.

Teilhard Chardin adverte-nos da “passagem do jurídico ao orgânico” na evolução da sociedade humana.

Nesta perspectiva, determina-se menos a supressão do direito do que a superação de um certo direito.

O que de todos estes movimentos de ideias, ao fazerem elas o diagnóstico do presente e ao perscrutarem o futuro, se pode em síntese concluir é que ao direito vai anunciado um ponto crítico de que ele poderá sair subvertido ou resgatado. Ou conserva o racionalismo formalizante que sempre o tem vindo a constituir e dele não ficará mais do que a carcassa ressequida e fria de um dispositivo serventuário de coação, se é que não será totalmente substituído por operatórias bem mais racionais e eficazes de programação e organização dos comportamentos. Ou ouve e faz seu o apelo de afirmação e de libertação que o homem dirige ao mundo humano, e será também dele o futuro, pois nesse caso o direito mais não é que o direito que ao homem compete de cumprir e reconhecer a sua humanidade na “multidão dos homens”. 

Muitos são os factores de que depende o cumprimento de um ou outro destes dois destinos, mas qualquer deles dependerá em boa parte, do papel que venha a assumir o jurista, – “a ciência transforma o mundo, mas só o homem pode transformar o homem” (Daniel-Rops).

Concluindo, o direito nasce com o homem, gerou-se em conjunto com ele e não é materializavel, de tal forma que não é passível de ser apagado ou mesmo destruído, porque ele está ligado a génese e a essência do ser humano.

Sobre António Maria Barbosa Soares da Rocha

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2 Comentários

  1. Por favor, coloque a referência do seu texto em respeito às ideias alheias : Castanheira Neves – “Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico e da sua metodologia e outros”, vol 1, p. 9-50.

  2. Compreendo a pertinência da sua observação, tendo em conta o rigor científico e académico a que as publicações devem obedecer – sou definitivamente contra o plágio.
    Não compreendo a sua deformação, cuja índole desconheço, porque na generalidade todos os comentadores usam pseudónimo – é o comportamento típico de uma fação de “boa gente” que temos no país e que abdico de adjetivar.
    Quanto ao cerne da questão, tenho a informar:
    1º) De todas as minhas publicações, as notações bibliográficas conhecidas, não são omitidas, como todos os leitores poderão compulsar.
    2º) A publicação em questão obedece a um trabalho por mim realizado em 2006. Ora, se tem ideias que se coadunam com as daquele autor, ainda bem, pois apenas me dignifica.
    3º) A obra que refere do Prof. Doutor Castanheira Neves, de quem tive o prazer de ser discente na cadeira de Introdução ao Estudo do Direito, em Coimbra, em 1980, DESCONHEÇO-A.
    4º) Tendo a publicação sido baseada em trabalho meu com algumas alterações, não irei mencionar qualquer bibliografia. No entanto, fica aqui o meu comentário para demonstrar à res publica a minha coragem, pois como muito bem deverá saber, poderia ter reencaminhado o seu comentário para spam. Certamente, se Vª Exª estivesse em posição inversa, era isso que aconteceria…
    5º) Caso continue a ser cáustico, considerarei por inútil tudo o quanto me dirigir. Querendo enviar-me e-mails ou encontrar-se pessoalmente, porque todos ganhamos com isto, faça favor de dispor.