As Câmaras Municipais, através do seu executivo, com a consequente aprovação em Assembleia, arrogam-se detentoras da via pública, onde todo o cidadão tem o direito de circular livremente, bem como, de utilizar os espaços do domínio público, nas mesmas circunstâncias que todos os restantes, independentemente da sua proveniência – circula em Portugal, logo, presume-se a sua autorização de circular neste país, seja ou não cidadão da comunidade europeia.
Com esta ratio, devemos considerar que a população circulante, residente ou não, tem a prerrogativa de usar dos meios ao seu alcance para proceder à respetiva locomoção. E quando utiliza um dos meios instrumentais a motor, essencialmente carro, tem a opção de estacionar na via pública ou em espaços privados. Tem-se constatado, que em ambas as circunstâncias, existe especulação, no primeiro caso, por imposição de taxas, e no segundo, ex vi da exploração de empresas privadas, imbuídas que são do privilégio económico e financeiro. Quanto à última realidade económica, não formalizamos qualquer objeção, sendo que, não vem de encontro ao que procuramos transmitir.
No que concerne à primeira realidade, é igualmente de natureza económica, e não menos que a segunda, apesar da preconizada aplicação de taxas.
Mas estaremos efetivamente na presença de taxas?! Não serão porventura, impostos?!
Ora vejamos:
– Quanto à teoria das taxas, refutá-mo-las, quer no seu aspeto material, quer formal. Se o objetivo da taxa consiste numa compensação, por uma questão de gestão financeira, nunca um município se predisporia a criá-la, sendo que, teoricamente, lhe traria avultados prejuízos, pela já aflorada gestão, envolvimento de recursos humanos e outros, para não falar da concessão a entidades privadas. Sobe substancialmente a medida do paradoxo, quando o setor público entrega a terceiros a cobrança de taxas, como se já não bastasse a exploração parcial do domínio público, consignado no art.º 84.º, n.º 1, al. d), da Constituição da República Portuguesa, doravante designada de CRP.
Com toda a rentabilidade que os estacionamentos controlados provocam, os municípios entregam a cobrança a privados de privilégio, homens de poder, satisfazendo assim, as necessidades privadas de eleição. Assim procedendo, o poder local está a ofender o princípio do Estado de direito democrático, ínsito no art.º 2.º da CRP, com a cumplicidade do poder central.
Não obstante, a ofensa a princípios de natureza constitucional não ficaria apenas por aqui. Vamos excluir o princípio unitário do Estado, o princípio da igualdade, o da proporcionalidade e o da oportunidade, para não ferirmos mais detalhadamente os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização da administração pública.
Mas não poderemos certamente olvidar a ideia, de que as sobreditas receitas não têm a natureza de taxas. É verdade que a taxa integra os tributos, atualmente quase em desuso, porque na generalidade das situações, estamos perante verdadeiros impostos. As taxas têm natureza sinalagmática, o que veicula Ana Paula Dourado a afirmar “…ao caracterizarem-se pela existência de um vínculo sinalagmático, as taxas pressupõem uma contraprestação pública individualizada, que pode traduzir-se, para o particular, quer numa utilidade quer no pagamento de custos (. . .) e o montante a pagar não deverá ultrapassar essa contraprestação (. . .).”. [1]
É fácil depreender, que cobrando a autarquia pelo uso do espaço temporário da via pública, não está a conceder um serviço ao particular, o qual já ocupa um lugar donde resulta a sua alíquota, à semelhança do que já definimos para o utente do domínio público.
Então, só poderemos mesmo enveredar pela existência de um imposto autárquico, como se denota pelas palavras de J. L. Saldanha Sanches, quando define o imposto, como “uma prestação pecuniária, singular ou reiterada, que não apresenta qualquer conexão com qualquer contraprestação retributiva e de que é titular uma entidade pública que utiliza as receitas assim obtidas para a cobertura das suas despesas e que surge quando a lei liga a uma determinada fattispecie um dever de prestar.”.
Efetivamente, tal como aprendemos das lições do Professor Teixeira Ribeiro, o imposto é uma prestação pecuniária, coativa, unilateral, sem caráter de sanção, exigida pelo Estado ou por entes públicos, com vista à realização de fins daquela natureza. Por outras palavras, quando a autarquia cobra pelo parqueamento na via pública, ficamos face à unilateralidade da receita, na medida em que o particular não terá direito à sua restituição, ou seja, é um pagamento definitivo, ao qual não corresponde nenhuma contraprestação específica por parte da entidade pública. Daqui se extrai mais um elemento corroborativo da nossa convicção, segundo a qual, quando o utente paga o parquímetro, é como «dar uma esmola às alminhas», pois também não tem retorno.
No que se refere à taxa, apregoada, mas não praticada, estamos perante o pagamento que tem como retorno a prestação de um serviço público ao particular, podendo estender-se de facto à utilização de bens do domínio público, mas não com a contrapartida, o sinalagmatismo e bilateralidade subjacentes ao fenómeno teórico da taxa.
Quanto ao cerne da questão, ao qual nos propomos, é imputar a atos da natureza dos descritos, praticados por persona non grata, vícios de inconstitucionalidade. Por outras palavras, a única entidade legitimada pela CRP para criar impostos, é o Estado, sendo que os mesmos são criados por lei, conforme consta do art.º 103.º da CRP.
Caso tomemos como exemplo a Câmara do Porto, sem pretendermos naturalmente ser despiciendos, as normas relativas à utilização do espaço público, estão previstas no Código Regulamentar do Município do Porto (CRMP), publicado originariamente em 2008, documento que reúne toda a legislação e regulamentos em vigor relacionados com a atividade da autarquia nas suas diversas áreas de atuação. Reconhecemos a sua imprescindível utilidade, mas não poderemos certamente reconhecer, a sua legitimidade para criar impostos ou receitas que configurem a sua natureza, face às caraterísticas que as suas medidas apresentam.
Apesar de os novos regulamentos para as Zonas de Estacionamento de Duração Limitada (ZEDL) e para as Zonas de Acesso Automóvel Condicionado (ZAAC) serem aprovados em reunião do Executivo, e por deliberação da Assembleia Municipal, insistimos em afirmar o vício de operabilidade que sobre os mesmos impende, ex vi designadamente, do preceituado nos art.ºs 165.º e 198.º da CRP.
Não deixamos de compreender a regulamentação e gestão dos espaços públicos, mas não poderemos concordar com os vícios inerentes à sua criação, sobretudo, quando os próprios municípios cognominam tais receitas de taxas de estacionamento. Igualmente compreendemos, que os regulamentos são criados em função de leis emanadas do poder central, mas sempre abnegaremos a falta de rigor jurídico adotado para tais medidas.
Destarte, se as receitas em questão fossem consignadas em decreto-lei, estaríamos perante a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por força do disposto no art.º 198.º, n.º 1, al. b); se tais receitas fossem previstas em lei, estaríamos igualmente sob a reserva relativa de competência da Assembleia da República, mas agora, por força do art.º 161.º, n.º 1, al. c).
Face ao exposto, e em síntese, só nos resta mesmo inferir, que as receitas dos parquímetros são inconstitucionais pela sua operabilidade e errónia designação jurídica – padecem dos vícios de inconstitucionalidade formal, material e orgânica, sendo que, a taxa reveste a natureza de imposto, e este deve ser criado por lei, cuja competência não é da respetiva Câmara Municipal. Depois, ofende princípios de ordem constitucional, entre os quais avulta o princípio do estado de direito democrático.
Não obstante, se por alguma razão a receita sub judice vier a ser considerada imposto, o acatamento dependerá do fim teleológico em concreto. Caso o fundamento em que assente, se prenda com a conservação da via pública, estaremos perante uma dupla tributação económica, sendo que já existe o Imposto Único de Circulação (IUC), receita camarária, com tal afetação.
No que concerne à encapotada taxação da via pública estamos perante a fenomenologia da derrogação da taxa, porque estão reunidas as caraterísticas para falarmos em verdadeiro imposto.
[1] Vd. Ana Paula Dourado, O princípio da legalidade fiscal na Constituição Portuguesa, in Perspectivas Constitucionais, volume II, Coimbra, 1993, pág. 439