Julgados de Paz – o poder implícito.

Julgados de Paz – o poder implícito.

Apesar da Constituição da República Portuguesa prever no nº 2 do artº 209º, a existência de Julgados de Paz para dirimir conflitos, o facto é que apenas em 2001 foi reconhecida e publicada a sua organização, competência e funcionamento, através da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, e conforme determina o artº 68º deste diploma, com entrada em vigor em 2002, ex vi de dotação prevista no orçamento do Estado para esse ano.

Daí que, as primeiras instalações a serem verificadas no país se limitem aos Julgados de Paz de Lisboa, Vila Nova de Gaia, Oliveira do Bairro e Seixal, em finais de Dezembro de 2001, basicamente, o ano de institucionalização dos tribunais daquela natureza a titulo experimental, como determina o artº 64º daquela lei.

Desde então, a lei manteve-se inalterada, tendo no entanto surgido alguma jurisprudência, que gradualmente veio dando vida aos Julgados de Paz, não os descaraterizando, mas servindo pelo contrário de aperfeiçoamento na resolução dos conflitos. Esperava-se uma alteração da lei por força dos orçamentos de 2010 e 2011, com efeitos a partir de Janeiro de cada um desses anos, mas a primeira alteração veio apenas a surgir em 2013 através da Lei nº 54 de 31 de Julho.

Francamente, não considero que os Julgados de Paz sejam verdadeiros tribunais, tendo a restrita função de ajudar a resolver uma pequena parte dos conflitos, e coartando por vezes competências que são atribuídas aos tribunais comuns, muitas das vezes contra a salvaguarda dos interesses do cidadão, como passarei a demonstrar (poder implícito).

Acrescento simplesmente, que o Juiz Conselheiro Cardona Ferreira, presidente do Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz, considera tais tribunais como Tribunais Extrajudiciais.

A competência destes tribunais é numa fase prima facie, de natureza quantitativa, porquanto apenas poderão ser interpostas ações que não ultrapassem a alçada dos tribunais de 1ª instância, e que presentemente se mantém em € 5 000,00. Situação que desde logo implica com o recurso, porque nas sentenças cujo valor não ultrapasse metade da alçada dos tribunais de 1ª instância, ou seja, € 2 500,00, não se poderá recorrer e temos caso julgado.

Logo, o demandado é obrigado a pagar sob pena de lhe ser movida ação executiva redundando na penhora de quaisquer bens de que disponha, nomeadamente salários, outros bens móveis sujeitos ou não a registo, assim como de bens imóveis, tudo nas circunstâncias definidas no Código de Processo Civil em sede de direito executivo (poder implícito).

Se o valor da sentença ultrapassar os referidos € 2 500,00, então, se o recorrente for o autor, acaba por concluir que teria sido preferível interpor ação no tribunal comum competente, porquanto, das sentenças dos Julgados de Paz poderá exclusivamente recorrer-se para os tribunais comuns da mesma comarca destes últimos ou para o tribunal especializado competente.

E derrogaram-se implicitamente princípios como o da economia de meios e processos e da celeridade processual, acrescendo o seu desgaste e gastos inesperados. Depois, seguindo o recurso o regime do agravo, o julgador encontra-se agora coartado pela matéria de facto discutida num tribunal extrajudicial, ficando ab initio com uma visão provavelmente diferente da que teria numa análise originária.

  1. DESTARTE, TEMOS ASSENTES DESDE JÁ 3 SITUAÇÕES, QUE EM NADA ABONAM A FAVOR DA NATUREZA DOS TRIBUNAIS EM COGITAÇÃO:
  • Sentença que serve de título executivo operado que seja o transito em julgado.
  • Limitação do recurso.
  • Meio expensivo e moroso em caso de recurso.
  1. 2. Depois, sempre há a necessidade de advertir os interessados sobre três situações muito significativas, que distinguem claramente estes tribunais dos comuns (poder implícito):
  • As testemunhas arroladas terão que ser apresentadas pelas partes – o tribunal não as notifica.
  • Todos terão que comparecer no Julgados de Paz onde ocorrer o processo no dia da audiência de julgamento, sob pena de se considerarem confessados os factos articulados pelo autor ou demandado, desde que a falta não seja convenientemente justificada no prazo de 3 dias. Isto significa, que se algum dos intervenientes residir no Porto, e o processo decorrer no Julgados de Paz de Lisboa, o mesmo terá que se deslocar à capital, pois não pode ser ouvido por teleconferência como acontece no tribunal comum ou nos Tribunais Administrativos e Fiscais.
  • A falta de contestação não implica a confissão dos factos articulados pelo autor, o que se justifica pela simplicidade de que se reveste estes tribunais, podendo designadamente serem prestadas verbalmente as respetivas peças, e reduzidas a escrito pelo funcionário do tribunal, cabendo apenas ao interessado proceder à sua subscrição.

À semelhança do que acontece com os tribunais comuns, não é obrigatório o patrocínio judiciário, atendendo ao valor da alçada do tribunal, assim como posteriormente em sede de recurso ou impugnação. No entanto, como tudo na vida, a generalização conduz à descaraterização, e cada vez se veem mais advogados a representar os seus clientes nos Julgados de Paz, cobrando nas mesmas circunstâncias, e com mais brevidade que no tribunal comum, porquanto o processo é resolvido com outra celeridade (poder implícito).

O patrocínio é contudo obrigatório nos casos em que a parte manifeste uma posição notória de inferioridade, tenha qualquer incapacidade, como sendo cega, surda ou muda, seja analfabeta, ou não conheça a língua portuguesa.

A primeira fase deste processo consiste na pré-mediação, o que também desvaloriza a pretensão do demandante, que na maior parte das vezes, fica-se por um acordo muito aquém do seu prejuízo ou pretensão. Não significa, que no tribunal comum, tal acordo também não possa ser realizado, mesmo momentos antes da audiência de julgamento.

Para aqueles mais familiarizados com o Código de Processo Civil, os articulados resumem-se à PI e contestação. Excecionalmente existe reconvenção, apenas quando o demandado pretende obter a compensação ou tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é feita. Portanto, a regra é não haver reconvenção, ou seja, o demandado ir com um pedido contra o demandante; não há réplica nem tréplica (poder implícito). Não admira assim que os processos da competência destes tribunais sejam resolvidos com mais celeridade, mas é inteligível, que não é pela sua perspicácia, e sim pela sua parca função na resolução dos conflitos.

Nos casos de incidentes, como sendo o de incompetência do tribunal, o Juiz faz remeter o processo para o tribunal competente, sendo aproveitados os atos processuais entretanto decorridos (poder implícito).

Estes tribunais não fazem grandes diligências, como é exemplo a não emissão de cartas precatórias e rogatórias, o que se traduz, s.m.o., na ofensa ao princípio da descoberta da verdade material (poder implícito), situação que também não tem paridade com os tribunais da natureza dos comuns ou de competência especializada.

Há também uma ofensa muito grande ao princípio da proporcionalidade. Suponhamos que o mesmo indivíduo do Porto tem um sinistro-auto no Algarve, onde foi passar férias, ou é vítima de um atropelamento. É evidente, que para a propositura da ação, poderá utilizar os meios informáticos que, segundo fonte segura, raramente são lidos, mas como tem a prerrogativa de apresentar verbalmente a sua petição, como deverá proceder? Telefonar? Certamente que não. Ora, perante as mesmas circunstâncias, temos situações desiguais.

Outra das situações que constitui uma antítese em relação aos outros tribunais, é o facto da sentença ser proferida na audiência de julgamento e ser posteriormente reduzida a escrito e enviada às partes. Regra geral demora mais as partes receberem a sentença do que a decidir o litígio, o que significa um contrassenso (poder implícito).

ARTIGO CORRELACIONADO: http://antoniosoaresrocha.com/justica/justica-o-poder-implicito

Sobre António Maria Barbosa Soares da Rocha

https://antoniosoaresrocha.com/sobre

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2 Comentários

  1. Bom dia
    concordo por inteiro com tudo o que afirma, e falo por expriência própria porque ainda ontem recebi a sentença dum julgado de paz enquanto demandante num processo e o que posso dizer é que se trata duma montanha que pare um rato, de tudo o que pedi uma análise independente e de direito perante o demandado o que é por mim concluido é que se trata de um ato de justiça de meia tijela em que foi condenado o demandado mas com pedido de desculpas por estar a ser condenado, em que o maior prejudicado sou eu quando me foi atribuida razão no que me queixei e sobre o qual o julgado se pronunciou, de resto estou “abismado” por tanta falta de eficácia.
    saudações

  2. Boa tarde.

    Antes de mais, agradeço o facto de ler e comentar o meu blogue. Depois, gostaria de deixar claro, que quando publiquei este artigo tinha em vista um determinado objetivo, que era denunciar mais uma das situações que retrata o nosso deficiente sistema de Justiça.
    Gostaria no entanto de deixar claro, que aos seus funcionários não poderá ser imputada qualquer culpa pelo modo de funcionamento das instituições, ficando fora do cogitação alguns Juízes, que têm critérios heterogéneos para causas iguais, conforme poderá ser compulsado na categoria “Justiça” do blogue.

    Os meus melhores cumprimentos