Negócio jurídico associativo – Irregularidades nas pessoas coletivas/FNKP/Federação Nacional de Karate – Contas de gerência e documentos de suporte

Negócio jurídico associativo – Irregularidades nas pessoas coletivas/FNKP/Federação Nacional de Karate – Contas de gerência e documentos de suporte

No presente artigo, vamos apenas restringir o nosso assunto às pessoas coletivas, cuja matéria decorre dos art.ºs 157.º ao 194.º, do CCivil, sendo que estas não podem ter como escopo o lucro económico dos seus associados ope legis. Assim sendo, pela sua especificidade, deixamos fora de cogitação toda a pessoa coletiva prevista no Código das Sociedades Comerciais (CSC), independentemente da forma que revista nos termos que a lei prevê, concretamente no sobredito diploma. Porém, sempre que o achemos por necessário, faremos o cotejo por analogia, conforme o preveem os artigos 9.º e 10.º do CCivil – poderão aqui compulsar o artigo do autor sobre a analogia legis e juris, conforme link que segue:

http://antoniosoaresrocha.com/direito/analogia-legis-e-juris-arto-10o-do-codigo-civil

A personalidade jurídica das entidades em questão, é atribuída na observância legal de determinados pressupostos, designadamente na forma, através de escritura pública, a publicidade através do registo na Conservatória do Registo Predial e publicação no Diário da República, e a exigência dos titulares dos órgãos que consistem no substrato pessoal da pessoa coletiva. 

De todo o seu modus operandi, constante dos estatutos, ínsitos na aludida escritura, ou de outros instrumentos de regulamento interno, por remissão daqueles, não poderão ser infringidas as disposições legais pelo caráter hegemónico que ocupam no direito sobre as disposições de caráter convencional. 

Apesar de a natureza das pessoas coletivas, e dos institutos jurídicos que as mesmas norteiam, elegemos como exemplo a Federação Nacional de Karate, designada de modo abreviado e prospetivamente, FNKP. O assunto que trazemos à colação, prende-se com o acesso às contas de gerência, bem como aos pertinentes documentos de suporte, por parte dos associados ou por grupo de associados legalmente representados. Ora, por força do art.º 11.º, al. d), dos Estatutos da FNKP, os elementos sub judice podem ser consultados pelos associados ordinários, conforme determina a norma jurídica que transcrevemos textualmente de seguida: 

Artigo 11.º

Direitos dos associados ordinários

São direitos dos associados ordinários da F.N.K.P.:

(…)

d) Examinar, através de legal representante, na sede da F.N.K.P. nos 15 dias que antecedem a reunião ordinária da Assembleia Geral, as contas da gerência e os respectivos documentos da prestação de contas.”

Importa esclarecer, que os associados ordinários são as associações, os árbitros e os treinadores, por força do corpo do art.º 8.º dos sobreditos Estatutos, os quais, ex vi do art.º 11.º daquele instrumento, se podem fazer intervir imperiosamente através do seu substrato pessoal, restringido ao seu representante estatutário, quando se tratem de associações. 

Nos restantes casos, árbitros e treinadores, como a norma é omissa, deve ser feita a sua interpretação nos termos do art.º 9.º e suprir a lacuna com o recurso ao art.º 10.º, ambos do CCivil. Por outras palavras, por uma interpretação a contrario sensu, quando não se tratem de associações, o sujeito em causa poderá fazer-se representar por si próprio, pois a lei devolve por defeito tal procedimento ao INTERESSADO. Vejamos o prescrito no art.º 134.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA): 

Artigo 134.º

Regime

1 – A lei pode prever que a produção de determinados efeitos jurídico-administrativos e o seu aproveitamento pelo interessado não dependa da emissão de um ato administrativo procedimentalizado, mas resulte, de forma imediata, da mera comunicação prévia pelo interessado do preenchimento dos correspondentes pressupostos legais e regulamentares. (O Bold foi acrescentado)

2 – 3 – (…).

Resulta, portanto, que as associações através dos seus representantes, os árbitros e os treinadores, são associados ordinários convencionais, ex vi do art.º 8.º dos Estatutos, cuja disposição também temos o cuidado de transmitir ipsis verbis, e esclarecer, para dissipar eventuais ambiguidades.

Assim:

Artigo 8.º

Associados ordinários

São associados ordinários as associações que congregam os praticantes, os árbitros e os treinadores dedicados à prática desportiva do Karaté que, estando devidamente legalizadas, tenham aceite os presentes Estatutos, cumpram os respectivos requisitos e sejam admitidas como tal em Assembleia Geral.

Até ao momento, na prática, apenas têm sido considerados associados ordinários, as associações, as quais intervêm em representação da sua pessoa coletiva, a qual CONGREGA hipoteticamente, outros clubes e treinadores. Porém, tendo em consideração o princípio da literalidade, todos globalmente considerados, têm de integrar forçosamente os associados ordinários, não somente porque pagam a sua quota enquanto associados, mas também, porque saem de cogitação dos associados de Mérito e Honorários – o art.º 7.º dos Estatutos em questão, apenas contempla estes três tipos de associados. Pelo que, fica a dúvida: em qual dos tipos se enquadram os treinadores e árbitros?! 

Compreendemos, que com uma redação ligeiramente diferente, talvez apenas se considerassem associados ordinários, as associações, as quais também só poderão compreender associados ordinários, com exceção daqueles que não tenham a situação contributiva regularizada perante a FNKP, porque estes não cumprem efetivamente os requisitos estatutariamente exigíveis.

Destarte, caso a redação do famigerado art.º 8.º fosse “São associados ordinários, as associações que congregam os praticantes, árbitros e treinadores, (…).”, nada nos repugnaria aceitar que apenas fossem associados ordinários, as associações. Mas tal como comumente transmitimos, as palavras gastam-se com o uso e prostituem-se com o abuso, sendo que em tais circunstâncias, não são raras as vezes em que a pontuação faz a diferença.

E todo aquele que se encontre nas circunstâncias ante descritas, também se poderá fazer representar, mas não será certamente nos termos dos estatutos ou do regulamento interno, porque tais elementos são omissivos nesta matéria. Uma das soluções, no mínimo para funcionar a posteriori, seria propor a revisão ou alteração dos estatutos, inserindo uma cláusula que contemplasse tal situação através da realização em assembleia ordinária ou extraordinária – vd. art.º 53.º dos Estatutos. 

O instituto da representação no que concerne a pessoas coletivas desta natureza, é por remissão do art.º 163.º do CCivil, concedida numa fase prima facie às determinações estatutárias. Por isso, a questão está salvaguardada nos moldes por nós traçados em precedência. Resta, porém, saber, se estas pessoas se poderão fazer representar por outrem ou em numa última ratio, ser assessoradas. Ora, até prova em contrário, poderão fazer ambas as coisas.      

A questão da legalidade do que quer que seja, deverá ser primeiramente equacionada nos termos estatutários, junto do Conselho de Justiça (art.º 31.º), embora o conteúdo desta disposição não seja muito claro. Poderemos dizer que até é demasiado omissivo, pelo que terá de ser colmatado com o recurso a outros meios, começando pelos legais. E a quem compete? Ora bem! A competência para aprovar balanços, o que significa que poderá ser reprovado, bem como para mover alguma demanda contra um dos órgãos da direção, é devolvida à Assembleia Geral (AG), conforme determina o n.º 2 do art.º 172.º do CCivil. 

E quando os delegados se pretendem fazer representar por outrem? Os Estatutos são omissos, conforme já referimos, pelo que, de novo estamos habilitados a lançar mão da Lei, in casu, com recurso aos art.ºs 258.º e ss. do CCivil. O delegado poderá fazer-se representar por terceiro, seja nos atos prévios ou consequentes, podendo aquele comunicar a sua intenção de representação. Por sua vez, o representante deverá ser portador de procuração especial, invocar a sua posição no início dos trabalhos, e deixar cópia da procuração, mediante exibição do original. Ou seja, para consulta de documentos ou das contas, deve ser emitida uma procuração especial – cada procuração deve especificar os atos que constituem o objeto da representação.

Por analogia com as sociedades comerciais, para corroborar o exposto, teríamos de nos socorrer ainda do art.º 988.º do CCivil, que dita assim “Nenhum sócio pode ser privado, nem sequer por cláusula do contrato, do direito de obter dos administradores as informações de que necessite sobre os negócios da sociedade, de consultar os documentos a eles pertinentes e de exigir a prestação de contas.”

No concernente à assessoria, designadamente prestada por um Contabilista Certificado (CC), o art.º 264.º/2 do CCivil deixa antevê-la por uma interpretação extensiva. Porém, para consultar contas, aqui deveria ser com a antecedência de 15 dias por força do art.º 11.º, al. d), dos Estatutos. Pelo que, para ser curial, e permitir aos membros de pleno direito, que estivessem imbuídos dos elementos necessários à realização de suposta reunião ordinária da AG, o presidente da assembleia deveria proceder à convocação com mais de um mês de antecedência, para dar cabal cumprimento aos aludidos estatutos – 15 dias para consulta; terminado que fosse este prazo, 15 dias para marcação da data da AG, no local pelo mesmo indicado.  

O membro assessorado, mesmo que seja em representação, e tirando inclusive fotografias, poderá fazê-lo, porque não o proíbem a Lei, nem os Estatutos, e fá-lo com um firme propósito – para bem da pessoa coletiva que integra, e cujos fins almeja ver satisfeitos com ampla dignidade, como também se infere por analogia do art.º 214.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC). A norma ínsita no n.º 4 deste preceito dispõe:

verbi gratia“4 – A consulta da escrituração, livros ou documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, que pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, bem como usar da faculdade reconhecida pelo artigo 576.º do Código Civil.”

Para corroborar tudo isto, dispomos de legislação relativamente recente, que traremos à colação noutras publicações previstas, verbi gratia, a Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto, a qual aprova o regime de acesso aos documentos administrativos e à informação administrativa, bem como à forma de acesso, encargos de reprodução e elementos sob a restrição da Lei da Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto.

LINK CORRELACIONADO:

Negócio jurídico associativo/Contas de gerência e documentos de suporte/Observância da forma_Pedido

Sobre António Maria Barbosa Soares da Rocha

António Maria Barbosa Soares da Rocha
EM TERMOS ACADÉMICOS, o autor obteve o grau de Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca, nas áreas do Direito Administrativo, Financeiro e Processual - programa de doutorado "Administração, Finanças e Justiça, no Estado Social", com a tese subordinada ao tema «O representante da Fazenda Pública no processo tributário - Enquadramento Institucional e Regime Jurídico». Como investigador, defendeu temas científicos em universidades de renome, designadamente no I Congresso de Investigadores Lusófonos e no I Congresso de Derecho Transnacional. Consagrou-se Mestre pela Universidade Católica, na área do Mestrado Geral em Direito, com a defesa da tese subordinada ao tema «Oposição Vs Impugnação Judicial», publicada pela editora daquela Universidade em Portugal e Brasil. Terminou a licenciatura em direito na Universidade Lusófona, embora a tivesse iniciado na Universidade de Coimbra, onde concluíra o 2.º ano do curso. NO ÂMBITO PROFISSIONAL, exerce a atividade de JURISCONSULTO, é blogger, youtuber, e autor das obras com edições continuadas “Oposição Vs Impugnação Judicial”, “O Essencial sobre o Arrendamento Urbano”, “Minutas e Formulários - Anotados e Comentados”, “A Demanda e a Defesa nas Execuções Cíveis e Fiscais”, "Manual do Regime Jurídico do Arrendamento - A Narrativa, a Ciência, o Pragmatismo e o Pleito, no Arrendamento, e "O representante da Fazenda Pública no processo tributário - Enquadramento Institucional e Regime Jurídico". O autor tem uma experiência superior a 30 anos como funcionário da Autoridade Tributária, passando por todas as metamorfoses da carreira até ocupar funções que se coadunam essencialmente com o direito. Em período precedente estivera ligado ao setor das telecomunicações, e de forma mais acentuada à mediação e direito dos seguros. NO CAMPO DESPORTIVO, é praticante de Karate Goju-Ryu e treinador reconhecido pelo IPDJ. Embora tenha iniciado essa prática com referência à linha do Mestre Taiji Kase, viria a ser consagrado cinto negro na vertente de Karate Shotokan pelo Mestre Hirokazu Kanazawa em 1999, e posteriormente, pelo estilo que ora pratica, da linha Okinawa Goju-Ryu Karatedo Kyokai.

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